9 de fevereiro de 2017 Ouvir o texto
Desde o surgimento dos sistemas educativos nacionais, no final do século 18, a escola foi pensada como forjadora de um novo futuro, o dos cidadãos letrados e integrados à vida republicana que poderiam desfrutar de uma mobilidade social ascendente. Porém, essa relação entre futuro e escola aparece fissurada com a situação atual de “crise de governo” e imprevisibilidade, com uma ameaça de caos cada vez mais presente. A escola segue sendo uma garantia para a formação cidadã, a empregabilidade, a mobilidade social, a conformação de identidades nacionais e a abertura de novos horizontes?
Existem sinais que apontam para pensar que essa utopia não morreu. É um fantasma que assombra muitas sociedades como esperança e tábua de salvação diante das formas inusitadas que a vida social tem tomado. Braudel dizia que as mentalidades tardam a mudar. Que mesmo acontecendo mudanças na estrutura material, o mundo mental teve persistências notáveis. Isso é o que faz com que nos surpreendamos diante da continuidade do imaginário educacional ascendente, forjado em outro contexto, porém que continua a moldar as ações de diversos atores. A surpresa aumenta se consideramos que há décadas escutamos que a educação está em crise.
A esse imaginário propagado amplamente na sociedade e relativamente consolidado está se opondo um discurso de caráter apocalíptico, sustentado no “solucionismo tecnológico”. Partindo dos problemas e de certas perspectivas que encaram as escolas como organizações atiquadas, rígidas e pouco flexíveis para uma adaptação às demandas da modernidade líquida, surgem propostas, inclusive revoluções, de ordem tecnológica que prescindem da história, dos atores, das relações de forças e das tradições culturais.
Contra o tédio, a gamificação; contra o sedentarismo, a deslocalização; contra a estrutura escolar, a aprendizagem espontânea.
Acreditamos que é preciso colocar em questão essas opções para poder esboçar os cenários do futuro para a escola. Por exemplo, surge a questão: em uma sociedade de hiperaceleração, como concentrar a aprendizagem nos esforços sustentados no tempo e no diferimento do “entretenimento” e do imediato? Em uma “sociedade do espetáculo”, que futuro cabe a uma instituição organizada em torno de rotinas e exercícios que exigem repetições, com ritmos lentos e espaços estruturados? Em um contexto que postula a primazia da inovação, a resposta imediata e a originalidade, que valor será dado à reflexão diferenciada, à transmissão da experiência, à introdução sistemática a estruturas de pensamento já formados, porém indispensáveis para gerar novidades? Em um mundo em que o presente se constitui em ordenador do tempo, em que manda o acontecimento, o aleatório e o instável, quais são as possibilidades de transmissão intergeracional? Em um mundo em que cresce a “individualização da referência” (como designa Marc Augé), pondo em causa as referências comuns, como avaliar seletivamente critérios, elementos e formas da cultura herdada?
As perguntas são muitas e demandam pensar em outras pedagogias e outros conteúdos. Também há a questão sobre se a escola poderá sobreviver a este contexto de novas exigências e pressões. É uma instituição da modernidade condenada a desaparecer ou definhar, ou veremos a sua transformação?
Existem diversos analistas que se propõem a responder a esta questão. Um exemplo é o panorama prospectivo oferecido pela OCDE em 20041, que delineou três possíveis cenários para os sistemas educativos no futuro: a manutenção do status quo, o fortalecimento da instituição escolar e o desaparecimento da escola. O primeiro seria aquele em que tudo segue como está, com instituições crescentemente burocratizadas e com crises recorrentes. O segundo cenário apresenta uma transformação escolar para que a escola recobre relevância, seja por intermédio da afirmação de seu papel social de formação de comportamentos e valores, ou realocando o seu lugar como centro de aprendizagem, com maior peso do instrucional, mais recursos e maior oferta nesse plano da formação. O terceiro é o do desaparecimento dos sistemas escolares, seja por pressão do mercado e abertura de novas instituições educativas não-escolares, pela extensão da sociedade de redes, ou por uma espécie de implosão dos sistemas diante da dificuldade de recrutar novos professores (um problema cada vez mais agudo em alguns países do norte).
Outra perspectiva aventou, faz tempo, Attali, em seu artigo La escuela de pasado mañana”, quando sugeriu que no futuro se combinarão cenários: existirão escolas que desaparecerão agarradas a sua lógica tradicional, hierárquica e burocrática, e outras se transformarão em “escolas inteligentes” fortemente imbricadas com a tecnologia, o que lhes permitirá complementar e diversificar tarefas e ações em torno da aprendizagem.
Na maior parte dessas análises, se fala mais de uma mutação da forma escolar que do desaparecimento da instituição como tal. Se propõe uma mudança da forma escolar para sustentar certas funções de transmissão cultural (códigos que poderiam ser chamados civilizatórios) e de socialização (aprender a viver juntos), juntamente com a incorporação da lógica de aprender a aprender (incluindo a de aprender a programar). A mudança da forma escolar sugere uma ideia de transição, de um passo e uma mudança regulada. Uma transformação pactuada, uma mudança real menos traumática.
Pode-se recordar da noção de “desenvolvimento proximal” de Vygotski e da perspectiva de Braudel dos tempos de mudanças sociais: estes são mais lentos e menos radicais do que é proclamado.
No espaço atual já podemos vislumbrar escolas que empreenderam esse caminho de mudar a forma de ensino e são denominadas na literatura como “inovadoras”, “enriquecidas”, “emergentes”, “estendidas”, “aumentadas”, “criativas”.
De todo modo, frente à opção de desaparecimento da escola, cabe preguntar: existe alguma outra instituição social que possa ocupar o lugar que hoje cobre a escola?
No lado da produção cultural de referências comuns, devemos reconhecer que a escola compete com outras agências como as redes sociais e o que resta da televisão, que proporcionam conhecimentos, idiomas e sensibilidades não só às novas gerações, mas também aos adultos. Porém, esse encontro está recortado pelo o que cada um pode ou sabe encontrar, e se abrem lacunas importantes entre os setores sociais, os perfis de consumo e as gerações. Isto mostra que fortalecer a escola pode ser a opção não só mais desejável, mas também a que tem maior possibilidade para romper.
Que a escola desapareça significa que a sociedade renuncia a esta introdução mais sistemática e mais lenta ao patrimônio cultural e a diálogos mais amplos com a experiência humana, ao menos até agora, em que não se inventaram ainda instituições que possam cobrir suas funções de igual maneira.
A escola pode oferecer um contexto onde se pode descansar em outros, em um patrimônio acumulado, em um conhecimento que outros nos oferecem, um encontro com outros e com a diversidade, em um espaço onde se pode cometer erros e tentar outra vez sem maiores consequências, mais íntimo que as redes apesar de seu caráter público, e denominado como um espaço de aprendizagem e não de desempenho no mundo adulto, mundo cada vez mais competitivo e imprevisível. Tudo isso é um presente a dar às novas gerações, que não teriam que jogar fora.
Que a escola possa ser um espaço e um tempo dessas características não quer dizer que efetivamente o seja sempre e em todos os casos. Precisamos de escolas que incorporem a inovação tecnológica, que tenham cada vez mais telas e janelas. Que sejam mais dialógicas e abertas ao mundo, porém conscientes da necessidade de defender sua especificidade na transmissão e recriação da cultura e do conhecimento. Porém estamos convencidos de que precisamos de escolas.
Se o horizonte é a desinstitucionalização, a desescolarização é o fim do espaço público escolar, as sociedades humanas perderão um de seus inventos mais maravilhosos e algo muito valioso para sua própria preservação e futuro. A resposta para a situação atual do sistema escolar não passa então por substituir as escolas existentes por plataformas online que oferecem conteúdos recortados pelo gosto de cada consumidor, mas pela valorização do espaço escolar com usos mais complexos e mais enriquecedores das novas tecnologias, e com um profundo compromisso de recriar o encontro entre gerações na transmissão e renovação do patrimônio cultural.
Por Dario Pulfer e Ines Dussel
Artigo publicado originalmente na plataforma Eduforics
Tradução: Priscila Fernandes
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